Reza a lenda que Deus tinha acabado de criar nosso mundo, com tudo
que aqui há (aliás, quase tudo, como se verá). Já tinha tirado o merecido
descanso dominical, curtindo o solzinho (uma de suas criações mais difíceis, segundo Ele)
de Jeriquaquara, Porto Seguro e Búzios. E até já fazia planos para novos mundos, quando, ao
lançar um derradeiro olhar sobre Sua obra, deparou-Se com curiosa cena. E pôs-Se a assuntar.
Neguinho ia passando numa estrada, meio lá meio cá, depois de umas manguaças, quando
lasca o dedão numa pedra e se esborracha no chão, feito côco seco. Tinha uma pedra no caminho.
Era uma pedrona, de uns dez quilos, incolor, transparente, brilhante... Neguinho se levantou, o dedão
latejando parecendo uma ameixa roxa, a unhona pendurada, pegou a pedra na mão e desabafou:
- Quem foi o filadaputa que deixou esse puta cristal de quartzo no meio do caminho?
Nisso, passa um médico, que logo se apressa em tratar a ameixa, digo, o dedão da vítima, extirpando
os restos de unha e fazendo o devido curativo. Na hora de receber, o médico, que já tinha
visto pedra semelhante alhures, dá uma de joão-sem-braço:
- O que é isso companheiro? Fui médico particular do Homem durante os seis dias da Criação!
Acaso passou por sua cabeça que eu iria me aproveitar de sua fragilidade, aqui nessa
estrada, para enfiar-lhe a faca? O juramento de Hipócrates para mim, é sagrado!
Minha assistência não lhe custa nada e até far-lhe-ia, de bom grado, o favor de levar, como
lembrança, essa que foi a cruel causadora de suas dores. Vou levar essa pedrona para mim.
Neguinho, ainda atordoado, já ia entregando a pedra, quando um economista passante intervém:
- Momentinho senhores! Sem querer, assisti ao que aqui se passou e gostaria de conhecer
melhor essa malfadada pedra. Não sei se vocês sabem, mas fui eu que fiz o plano de
viabilidade econômica do mundo, a pedido do Homem.
Após examinar a pedra contra o sol, girando-a por cerca de cinco minutos, faz surpreendente oferta:
- Sou professor de economia mineral (Deus já tinha criado a economia mineral) e
gostaria de levar esse espécime de topázio, sem valor econômico, apenas para compor
o acervo de amostras da minha instituição. Para não dizerem que levei de graça, dou-lhes
cem reais, cinquentinha para cada um, e estamos conversados!
Neguinho já ia passando a mão nos cinquenta, quando, surgido não se sabe de onde, um
administrador interrompe o tripartite colóquio:
- Mas o que temos aqui? Três adultos numa negociação de boca, sem nada escrito, sem
ao menos um contrato! Onde está o profissionalismo? Na qualidade de assessor
administrativo do Homem, fui eu que planejei a Criação, em seus mínimos detalhes.
Vamos fazer um plano de negócios pra botar uma ordem nessa zorra!
Tomou a pedra do economista, tentou riscar-lhe com uma lâmina de canivete, mas
a lâmina é que saiu toda arranhada, perdendo o fio. Sem pestanejar propôs:
- Esta pedra serve direitinho para segurar a porta lá de casa, que bate muito com o vento.
O plano de negócios é o seguinte: eu fico com ela por duzentos reais, em quatro
prestações mensais e iguais. Para sacramentar a transação, aqui está um contrato
prontinho pra assinarmos sem mais perda de tempo.
Como naquela estrada passava de tudo, eis que chega um engenheiro, exatamente
a tempo de impedir a insólita negociação. Dizendo-se responsável técnico pela Criação, pede
para que todos se afastem e inicia um meticuloso exame na sanguinária pedra. Anota todas
as dimensões, inclusive os ângulos das faces e arestas, expõe ao sol, olha com uma minúscula
lupa (uma das últimas criações de Deus, antes de Adão e Eva), risca, cheira, lambe, ausculta, e
o escambau. Depois, com a solenidade das grandes sentenças, anuncia:
- Tecnicamente falando, trata-se de um megacristal de coríndon incolor, mineralzinho chulo, que
não serve pra nada, mas dá uma boa pedra de amolar. Gostaria de tê-la, para amolar minhas
ferramentas. Sendo assim, pra acabar com o leilão que aqui se instalou, a pedra é minha por mil reais.
- UUHHHHHH! Fez a platéia em volta. Sim, porque, àquela altura já havia uma pequena multidão
em volta do grupo e da polêmica pedra.
- Mil reais??? Por mim, negócio fechado, fez o bebum, doido pra pegar a grana e voltar pra sua taberna.
- Eu cheguei aqui primeiro e tratei a ameixa, isto é, o dedão do pé desse bebão.
Tenho preferência, portanto. Fico com a pedra por dois mil reais! E ponto final!
- UUHHHHH! A platéia delirava.
- Bom, como prova do meu amor pelas ciências e pela educação, levo a pedra por
quatro mil reais e não se fala mais nisso!
- Vende! Vende! Vende! A platéia berrava.
- Sem organização não chegaremos a lugar nenhum! E meu plano de negócios?
Pois vou alterar a cláusula de valor e estipular em dez mil reais o preço da pedra. Fim de papo.
Três mocinhas da primeira fila da platéia desmaiaram. Uma mulher grávida pariu
uma garotona, imediatamente batizada de Pedrita. Neguinho se animou:
- Quem dá mais? Quem dá mais?
Quando o engenheiro levantou o braço pra fazer sua contraoferta, um personagem novo
entra na história. Nada mais, nada menos que um advogado. Ou, conforme se apresentou
ao surpreso grupo, assistente jurídico do Homem, durante a Criação.
- Se não fosse eu, o Homem tava ferrado. Mais de mil ações por danos morais, já pensou?!
Ganhei todas!
Diante da barulheira infernal, o advogado começou a berrar:
- Data vênia minha gente! Datíssima vênia! Quo vadis?
Sem mais recursos, pegou duas varas, exibiu-as no ar formando uma cruz e soltou os pulmões:
- Vade retro satanás! Vade retro cão das sete portas!
Um silêncio sepulcral se formou, quebrado apenas pelas risadas da moça que recebeu
uma pomba-gira, na última fila da platéia.
O assistente do Homem, então, tirou de sua mochila (criada especialmente para ele, pelo Homem)
o código penal, o código civil, a CLT, o código nacional de trânsito, a Constituição Federal
e o escambau de asa.
- Onde estamos minha gente? Data vênia, temos aqui quatro aproveitadores querendo
explorar a infelicidade desse pobre bebum, que teve a sorte e o azar de arrebentar a cabeça
do dedão do pé nessa pedra. Azar, porque perdeu uma unha, e uma unha, por mais
unha que seja, é também obra da criação e merece todo nosso respeito.
O bebum, que era mineiro, encheu-se de brios:
- Uai sô! Intão vam fazê um minutin de silenz pur minh'unhona, uai!
E assim foi feito.
- Mas foi sorte também, retomou o advogado, porque era uma baita de uma unha
encravada, provavelmente um pequeno descuido da equipe técnica auxiliar do Homem.
Mas, nada disso justifica o que aqui se passa, porque uma coisa é uma coisa, outra coisa
é outra coisa. O fato objetivo é que temos aqui um crime cristalinamente cometido. Temos
sangue e temos vítima. E, nesse ponto, a lei é implacável, dela não escapando nem o reino
britânico, muito menos o reino mineral. Dura lex, sed lex. Portanto, sem mais delongas, a
pedra está presa, em nome da lei, para averiguações, exames de corpo de delito, antecedentes
criminais, etc e tal. Até a completa e cabal elucidação dos fatos. Duela a quien duela, no más!
Na platéia, a pomba-gira tinha agora a companhia de um preto-velho, que desceu doido
por um marafo. O advogado prosseguiu:
- Quanto a esses salafrários aproveitadores, serão todos enquadrados na forma da
lei, salvo melhor juízo. E saiu enquadrando todo mundo, a torto e a direito:
- Você está enquadrado no código do consumidor. Você na CLT. Você na lei das
contravenções e você na 8.666...
Ao ouvir seu enquadramento, o engenheiro, inconformado, partiu para cima do
causídico do Senhor, para tirar satisfações. Ao fazê-lo, contudo, deu um pisão na
ameixa, digo no dedão do pé do bebum. Este, injuriado e não entendendo mais
porra nenhuma, deu um contravapor na orelha do engenheiro, que foi se esbarrar
com o médico, caindo ambos. Puto da vida, botou a pedra debaixo do braço e
encostou-se numa árvore, em posição de defesa:
- Na minha pedra ninguém toca! Na minha pedra ninguém toca!
Sacudindo a poeira e dando a volta por cima, o médico sacou um bisturi
de 15 cm, afiadíssimo, e ameaçou dissecar o engenheiro ali mesmo. O administrador, no meio
da confusão, levou um sopapo do economista. Pra se vingar, pegou um chucho de
madeira e mirou bem no coração do advogado, salvo pela capa dura da nova edição da CLT.
A essa altura, o engenheiro se esgrimia com o economista, numa roda formada pela platéia.
Este, com sua régua de cálculo, aquele com sua régua T. A platéia entrou em delírio, quando
o tranca-rua, recém-baixado, deu um direto no queixo do preto-velho, derrubando-o em cima
da pomba-gira, que, mesmo assim, continuava dando risadas. Enfim, uma zorra concentrada a quente.
Deus, que a tudo assistia (lembram-se do primeiro parágrafo?), vendo aquela zorra
no Seu mundo, que deveria ser perfeito, suspirou:
- Meu De... Ops! Meu Filho, onde foi que eu errei?
E pensou, pensou, pensou... Já estava quase desistindo, quando Lhe veio um estalo:
- Caraca! Onde estava com a cabeça? Esqueci de criar o geólogo!
Imediatamente completou sua obra. Levou um susto quando viu o resultado, pois, na pressa, fez
um ser mal-ajambrado pra caramba. Depois conserto, pensou. E, pondo a destra na cabeça
da criatura, ordenou, amorosamente:
- Vai lá, meu filho, e acabe com aquela bagunça.
O geólogo, ainda meio zonzo da criação assim tão espontânea, já ia saindo, após
receber uma capanga, também recém-criada, com todos os apetrechos de tabalho
dentro, inclusive uma garrafinha e uns sanduíches velhos, com ovo estragado, provavelmente
sobras de outro mundo, quando ouviu a última recomendação:
- Mas, aja rápido, que ainda tenho um mundo pra começar a criar amanhã cedinho, viu filho?
E assim, o geólogo adentra a lamentável cena. No caminho, tinha mamado metade da
garrafinha enquanto traçava os sanduíches de ovo estragado. Afinal, não tinha comido
nada ainda, desde que fora criado. Subiu num barranco, bateu palmas para chamar a
atenção, ninguém ligou. O pau comia solto.
que aqui há (aliás, quase tudo, como se verá). Já tinha tirado o merecido
descanso dominical, curtindo o solzinho (uma de suas criações mais difíceis, segundo Ele)
de Jeriquaquara, Porto Seguro e Búzios. E até já fazia planos para novos mundos, quando, ao
lançar um derradeiro olhar sobre Sua obra, deparou-Se com curiosa cena. E pôs-Se a assuntar.
Neguinho ia passando numa estrada, meio lá meio cá, depois de umas manguaças, quando
lasca o dedão numa pedra e se esborracha no chão, feito côco seco. Tinha uma pedra no caminho.
Era uma pedrona, de uns dez quilos, incolor, transparente, brilhante... Neguinho se levantou, o dedão
latejando parecendo uma ameixa roxa, a unhona pendurada, pegou a pedra na mão e desabafou:
- Quem foi o filadaputa que deixou esse puta cristal de quartzo no meio do caminho?
Nisso, passa um médico, que logo se apressa em tratar a ameixa, digo, o dedão da vítima, extirpando
os restos de unha e fazendo o devido curativo. Na hora de receber, o médico, que já tinha
visto pedra semelhante alhures, dá uma de joão-sem-braço:
- O que é isso companheiro? Fui médico particular do Homem durante os seis dias da Criação!
Acaso passou por sua cabeça que eu iria me aproveitar de sua fragilidade, aqui nessa
estrada, para enfiar-lhe a faca? O juramento de Hipócrates para mim, é sagrado!
Minha assistência não lhe custa nada e até far-lhe-ia, de bom grado, o favor de levar, como
lembrança, essa que foi a cruel causadora de suas dores. Vou levar essa pedrona para mim.
Neguinho, ainda atordoado, já ia entregando a pedra, quando um economista passante intervém:
- Momentinho senhores! Sem querer, assisti ao que aqui se passou e gostaria de conhecer
melhor essa malfadada pedra. Não sei se vocês sabem, mas fui eu que fiz o plano de
viabilidade econômica do mundo, a pedido do Homem.
Após examinar a pedra contra o sol, girando-a por cerca de cinco minutos, faz surpreendente oferta:
- Sou professor de economia mineral (Deus já tinha criado a economia mineral) e
gostaria de levar esse espécime de topázio, sem valor econômico, apenas para compor
o acervo de amostras da minha instituição. Para não dizerem que levei de graça, dou-lhes
cem reais, cinquentinha para cada um, e estamos conversados!
Neguinho já ia passando a mão nos cinquenta, quando, surgido não se sabe de onde, um
administrador interrompe o tripartite colóquio:
- Mas o que temos aqui? Três adultos numa negociação de boca, sem nada escrito, sem
ao menos um contrato! Onde está o profissionalismo? Na qualidade de assessor
administrativo do Homem, fui eu que planejei a Criação, em seus mínimos detalhes.
Vamos fazer um plano de negócios pra botar uma ordem nessa zorra!
Tomou a pedra do economista, tentou riscar-lhe com uma lâmina de canivete, mas
a lâmina é que saiu toda arranhada, perdendo o fio. Sem pestanejar propôs:
- Esta pedra serve direitinho para segurar a porta lá de casa, que bate muito com o vento.
O plano de negócios é o seguinte: eu fico com ela por duzentos reais, em quatro
prestações mensais e iguais. Para sacramentar a transação, aqui está um contrato
prontinho pra assinarmos sem mais perda de tempo.
Como naquela estrada passava de tudo, eis que chega um engenheiro, exatamente
a tempo de impedir a insólita negociação. Dizendo-se responsável técnico pela Criação, pede
para que todos se afastem e inicia um meticuloso exame na sanguinária pedra. Anota todas
as dimensões, inclusive os ângulos das faces e arestas, expõe ao sol, olha com uma minúscula
lupa (uma das últimas criações de Deus, antes de Adão e Eva), risca, cheira, lambe, ausculta, e
o escambau. Depois, com a solenidade das grandes sentenças, anuncia:
- Tecnicamente falando, trata-se de um megacristal de coríndon incolor, mineralzinho chulo, que
não serve pra nada, mas dá uma boa pedra de amolar. Gostaria de tê-la, para amolar minhas
ferramentas. Sendo assim, pra acabar com o leilão que aqui se instalou, a pedra é minha por mil reais.
- UUHHHHHH! Fez a platéia em volta. Sim, porque, àquela altura já havia uma pequena multidão
em volta do grupo e da polêmica pedra.
- Mil reais??? Por mim, negócio fechado, fez o bebum, doido pra pegar a grana e voltar pra sua taberna.
- Eu cheguei aqui primeiro e tratei a ameixa, isto é, o dedão do pé desse bebão.
Tenho preferência, portanto. Fico com a pedra por dois mil reais! E ponto final!
- UUHHHHH! A platéia delirava.
- Bom, como prova do meu amor pelas ciências e pela educação, levo a pedra por
quatro mil reais e não se fala mais nisso!
- Vende! Vende! Vende! A platéia berrava.
- Sem organização não chegaremos a lugar nenhum! E meu plano de negócios?
Pois vou alterar a cláusula de valor e estipular em dez mil reais o preço da pedra. Fim de papo.
Três mocinhas da primeira fila da platéia desmaiaram. Uma mulher grávida pariu
uma garotona, imediatamente batizada de Pedrita. Neguinho se animou:
- Quem dá mais? Quem dá mais?
Quando o engenheiro levantou o braço pra fazer sua contraoferta, um personagem novo
entra na história. Nada mais, nada menos que um advogado. Ou, conforme se apresentou
ao surpreso grupo, assistente jurídico do Homem, durante a Criação.
- Se não fosse eu, o Homem tava ferrado. Mais de mil ações por danos morais, já pensou?!
Ganhei todas!
Diante da barulheira infernal, o advogado começou a berrar:
- Data vênia minha gente! Datíssima vênia! Quo vadis?
Sem mais recursos, pegou duas varas, exibiu-as no ar formando uma cruz e soltou os pulmões:
- Vade retro satanás! Vade retro cão das sete portas!
Um silêncio sepulcral se formou, quebrado apenas pelas risadas da moça que recebeu
uma pomba-gira, na última fila da platéia.
O assistente do Homem, então, tirou de sua mochila (criada especialmente para ele, pelo Homem)
o código penal, o código civil, a CLT, o código nacional de trânsito, a Constituição Federal
e o escambau de asa.
- Onde estamos minha gente? Data vênia, temos aqui quatro aproveitadores querendo
explorar a infelicidade desse pobre bebum, que teve a sorte e o azar de arrebentar a cabeça
do dedão do pé nessa pedra. Azar, porque perdeu uma unha, e uma unha, por mais
unha que seja, é também obra da criação e merece todo nosso respeito.
O bebum, que era mineiro, encheu-se de brios:
- Uai sô! Intão vam fazê um minutin de silenz pur minh'unhona, uai!
E assim foi feito.
- Mas foi sorte também, retomou o advogado, porque era uma baita de uma unha
encravada, provavelmente um pequeno descuido da equipe técnica auxiliar do Homem.
Mas, nada disso justifica o que aqui se passa, porque uma coisa é uma coisa, outra coisa
é outra coisa. O fato objetivo é que temos aqui um crime cristalinamente cometido. Temos
sangue e temos vítima. E, nesse ponto, a lei é implacável, dela não escapando nem o reino
britânico, muito menos o reino mineral. Dura lex, sed lex. Portanto, sem mais delongas, a
pedra está presa, em nome da lei, para averiguações, exames de corpo de delito, antecedentes
criminais, etc e tal. Até a completa e cabal elucidação dos fatos. Duela a quien duela, no más!
Na platéia, a pomba-gira tinha agora a companhia de um preto-velho, que desceu doido
por um marafo. O advogado prosseguiu:
- Quanto a esses salafrários aproveitadores, serão todos enquadrados na forma da
lei, salvo melhor juízo. E saiu enquadrando todo mundo, a torto e a direito:
- Você está enquadrado no código do consumidor. Você na CLT. Você na lei das
contravenções e você na 8.666...
Ao ouvir seu enquadramento, o engenheiro, inconformado, partiu para cima do
causídico do Senhor, para tirar satisfações. Ao fazê-lo, contudo, deu um pisão na
ameixa, digo no dedão do pé do bebum. Este, injuriado e não entendendo mais
porra nenhuma, deu um contravapor na orelha do engenheiro, que foi se esbarrar
com o médico, caindo ambos. Puto da vida, botou a pedra debaixo do braço e
encostou-se numa árvore, em posição de defesa:
- Na minha pedra ninguém toca! Na minha pedra ninguém toca!
Sacudindo a poeira e dando a volta por cima, o médico sacou um bisturi
de 15 cm, afiadíssimo, e ameaçou dissecar o engenheiro ali mesmo. O administrador, no meio
da confusão, levou um sopapo do economista. Pra se vingar, pegou um chucho de
madeira e mirou bem no coração do advogado, salvo pela capa dura da nova edição da CLT.
A essa altura, o engenheiro se esgrimia com o economista, numa roda formada pela platéia.
Este, com sua régua de cálculo, aquele com sua régua T. A platéia entrou em delírio, quando
o tranca-rua, recém-baixado, deu um direto no queixo do preto-velho, derrubando-o em cima
da pomba-gira, que, mesmo assim, continuava dando risadas. Enfim, uma zorra concentrada a quente.
Deus, que a tudo assistia (lembram-se do primeiro parágrafo?), vendo aquela zorra
no Seu mundo, que deveria ser perfeito, suspirou:
- Meu De... Ops! Meu Filho, onde foi que eu errei?
E pensou, pensou, pensou... Já estava quase desistindo, quando Lhe veio um estalo:
- Caraca! Onde estava com a cabeça? Esqueci de criar o geólogo!
Imediatamente completou sua obra. Levou um susto quando viu o resultado, pois, na pressa, fez
um ser mal-ajambrado pra caramba. Depois conserto, pensou. E, pondo a destra na cabeça
da criatura, ordenou, amorosamente:
- Vai lá, meu filho, e acabe com aquela bagunça.
O geólogo, ainda meio zonzo da criação assim tão espontânea, já ia saindo, após
receber uma capanga, também recém-criada, com todos os apetrechos de tabalho
dentro, inclusive uma garrafinha e uns sanduíches velhos, com ovo estragado, provavelmente
sobras de outro mundo, quando ouviu a última recomendação:
- Mas, aja rápido, que ainda tenho um mundo pra começar a criar amanhã cedinho, viu filho?
E assim, o geólogo adentra a lamentável cena. No caminho, tinha mamado metade da
garrafinha enquanto traçava os sanduíches de ovo estragado. Afinal, não tinha comido
nada ainda, desde que fora criado. Subiu num barranco, bateu palmas para chamar a
atenção, ninguém ligou. O pau comia solto.
- Atenção minha gente! Por favor!
Começou a ficar puto! Tirou da capanga a garrafinha e levou-a, avidamente, aos lábios.
- Atenção cambada de filadaputa!
O ovo estragado começou a fazer efeito. O geólogo suava aos cântaros. Sorveu mais uns três goles dolíquido quente, o que deve ter aumentado a fermentação estomacal. O calor era insuportável. A barriga do geólogoparecia uma bomba atômica. Até que o pino não aguentou e explodiu:
- PUUUMMMM!!!!
Foi o maior pum que jamais se ouviu sobre a face da Terra. O pipoco ecoou nas serranias e provocou uma reverberação estrondosa, que quase arrebenta os tímpanos dos brigões. O cheiro de enxofre inundou o ambiente, forçando os contendores a protegerem o nariz. Aos poucos, a balbúrdia se aquietou. Depois de três explosões secundárias, o silêncio era de cemitério. Nesse momento, todos se voltaram para aquela coisa estranha, aboletada sobre o barranco da estrada:
- Uma figura imunda, coberta de poeira;
- Colete sujo esquisito, cheio de bolsos;
- Uns troços pendurados no pescoço;
- Boné esculhambado, aba pra trás;
- Óculos raiban escuros;
- Barba imensa de troglodita;
- Capanga bolorenta a tiracolo;
- Cinturão de couro, com um monte de coisas penduradas, destacando-se um martelo, calibre 38, cabo longo;
- Calça jeans surrada que nunca viu água;
- Perneiras sobre as calças e botina de couro.
- Olha aqui cambada, o Homem me mandou aqui pra acabar com essa baderna.
Assim dizendo, sacou o martelo, para utilizá-lo como banquinho, pois pretendia sentar-se pra fazer seu discurso. Achando que ia começar um tiroteio, a platéia se mandou. Em uma fração de segundo pomba-gira, preto-velho e tranca-rua desincorporaram e escafederam. Ficaram somente o bebum e os interessados na pedra.
O geólogo tratou, então, de terminar logo sua tarefa.
- Vou resumir o que temos aqui. Neguinho tropeçou num baita diamante, e agora sofre o assédio imoral de cinco espertalhões, cada um se fingindo de morto pra levar a pedra para si, por um preço irrisório.
Neguinho quase tem um ataque cardíaco, apertando a pedra contra o peito com as duas mãos:
- A pedra é minha, ninguém tasca, eu vi primeiro!
O geólogo continuou:
- Bom, o fato é que alguém vai ter de ficar com o diamante... Mas, quem?
- Todos levantaram o braço, a um só tempo:
- Eu!!
- Então, vamos resolver isso rapidinho. Com a autoridade que me foi dada pelo Homem, farei uma, e uma só, pergunta a cada um dos interessados. Não haverá segunda chance. Aquele que acertar sua resposta, de primeira, será o feliz proprietário do diamante. Ok?
-Ok, todos responderam, menos Neguinho, claro.
- Comecemos então, disse o geólogo, não sem antes dar mais uma golada na inseparável garrafinha.
Dirigindo-se ao médico, perguntou de sopetão:
- Então homem dos medicamentos, diga-nos: qual o antitérmico específico para baixar a febre do ouro?
Desconcertado, o médico foi se desculpando:
- Seria a mesma coisa da febre amarela?!
O geólogo o encarou por uns bons 15 segundos. O médico, entendendo o recado, pega sua maleta e se manda.
Chamando o economista, o geólogo dispara:
- Vamos lá, homem dos custos: considerando o valor da matéria-prima, o que sai mais em conta para um programa de moradia popular: casa com telhado de vidro na praia, ou barracão de zinco sem telhado e sem pintura lá no morro?
- Bom... É... Seria para o "Minha Casa, Minha Vida"?
Sem nenhum comentário do geólogo, após 15 segundos de profundo silêncio, o economista pega sua régua de cálculo e cai na estrada.
Vendo que seria o próximo, o administrador já ia saindo de fininho, mas o geólogo interpela-o:
- Calma homem dos planos! O senhor que conhece de cabo a rabo os planos de negócios, me diga: qual é a estrutura de um plano de falha?
- Plano de falha?? Não seria um plano de falência?
O administrador nem esperou resposta. Baixou os olhos, pegou sua pastinha e deu no pé.
Para comemorar o bom andamento de sua missão, até ali, o geólogo deu uma beiçada na garrafinha e dirigiu-se, candidamente, ao engenheiro:
- Mas diga-nos, homem do tijolo e do cimento, o que acha do uso das placas tectônicas em lugar das placas de concreto?
- É... Por um acaso, o senhor quer dizer placa arquitetônica??
Silêncio constrangedor.
- Bom, é melhor eu ir andando. Tenho uma obra pra fiscalizar ainda hoje.
Assim dizendo, sumiu pela estrada, a régua T debaixo do braço.
Naquele momento, o advogado acabava de recolher seus códigos legais espalhados durante a refrega.
- Muito bem, disse o geólogo, pelo que vejo, o senhor conhece todas as leis de todos os códigos da terrinha.
- Isso mesmo, de trás pra frente, de cor e salteado.
- Pois então, homem das leis, quantos artigos existem na lei da sucessão estratigráfica?
- Data vênia, não seria lei da sucessão hereditária?!
Ante o olhar implacável do inquisidor, o advogado terminou de recolher seus códigos para ir embora, mas ainda pode ouvir:
- Aprenda de uma vez, homem das leis: há mais leis entre o céu e a terra do que...
O resto ele não ouviu porque já estava muito longe, estrada a fora.
Ufa! Missão cumprida, pensou o geólogo. Paz restabelecida, platéia dispersa, aproveitadores escorraçados... Só o pobre do bebum, que não tinha entendido porra nenhuma, continuava com sua pedra debaixo do braço:
- A pedra é minha e ninguém tasca!
Por duas vezes ameaçou atirá-la na cabeça do geólogo.
Nesse momento, Deus resolveu dar o toque final na história e apareceu, em pessoa. Usando de Seus poderes magnéticos, retirou a pedra do bebum e deu-a ao geólogo.
Inconsolável, Neguinho resistia a seguir viagem, mas Deus, a sinistra em sua cabeça, aconselhou-lhe:
- Vai meu filho, que tua ameixa, isto é, teu dedão já está curado. Vá para sua amada Minas e, lá chegando, torne-se um poeta e quando se lembrar dessa pedra do caminho, faça uma bela poesia. Ah! Leve esse barrilzinho contigo e, chegando lá, distribua o conteúdo com teus conterrâneos. Eles vão gostar pra caramba. Tem um papelzinho dentro, com a receita. Vai com De... Ops! Vai Comigo!
E assim foi. Neguinho montou um alambique, mas até hoje nunca esquece que havia uma pedra no caminho.
Ao geólogo finalmente, Deus disse:
- Meu filho, estou com muita pressa, vim apenas me despedir e agradecer, porque contigo, completei minha Criação. A Terra sem geólogo é como acarajé sem vatapá.
Tomando aquele imenso diamante de 10 quilos nas mãos, jogou-o para cima, e a pedra se esfalerou em bilhões de minúsculos fragmentos, levados pelos ventos e espalhados nos quatros cantos do mundo.
- Vai meu filho, estuda a Terra, mapeia as pedras, os rios, os vales, as montanhas e suas entranhas. Mostra aos homens que tudo de que eles precisam pra sobreviver, Eu provi aqui mesmo. Certo que alguns bens metálicos Eu escondi nuns lugares esquisitos por aí, nem Me lembro mais onde, mas tu hás de descobrir, com tua perspicácia. E sendo a Terra o celeiro das minhas criaturas diletas, é preciso respeitá-la, entendê-la e, sobretudo amá-la. Ensina tudo isso aos homens, em Meu nome. Vai que é tua, Brucutu!
- Como recompensa pelo teu competente trabalho, jamais correrás o risco de perder a unha num diamantão desse quilate. Aos garimpeiros caberá a tarefa de reunir os pedacinhos que aqui hoje dispersei. Mas, para isso, terão que ralar muito. E essa garrafinha te acompanhará para sempre. Será o bálsamo para a vida sofrida que terás. Mas beba com moderação, viu, meu filho?
Assim dizendo, pegou uma nuvem fria e se perdeu, céu a fora.
E é por isso que as coisas são como são.
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